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Enchentes e o preço da negligência

Antes de mais nada, quero dizer que especificamente neste texto reservo-me o direito ao apelo emocional, mas me esforçarei para fazer uma análise minimamente técnica sobre a ineficiência do estado e como compactuamos com ela.

O fato

As tão famosas águas de março vieram. EEEEEEEHH!!! Legal? Legal! Cientificamente de forma localizada, cada grande cidade implica em seu próprio e micro “aquecimento global”. Sendo São Paulo uma das maiores do mundo, não ficaria de fora já que joga toneladas de resíduos no ar todos os dias e isso por sua vez cria um dome de poeira e fumaça. A implicação fica mais evidente quando há repentinas e grandes alterações climáticas.

Desde domingo então, uma forte torrente assolou a cidade de São Paulo causando alagamentos, mortes, desaparecimentos e muita, muuuuuita lama! As áreas mais afetadas foram o ABC, Ipiranga e começo da Zona Leste (proximidades da Vila Prudente, Moóca e Parque São Lucas).

Como morador a 27 anos do bairro do Ipiranga, mais precisamente na Vila Carioca (uma pequena parte industrial onde décadas atrás moravam apenas os operários de metalúrgicas e suas famílias) presenciei muitas mudanças, desde a “tão esperada” estação tamanduateí do metrô, o posto PAZ, às reformas dos colégios de ensino fundamental.

Apresentação um tanto longa mas necessária, vamos mais fundo na questão…

De quem é a culpa?

Em redes sociais vi dezenas de pessoas postando coisas como “é por isso que você não deve jogar lixo na rua”, “vai pro bloquinho e deixa a rua imunda, depois alaga tudo”… um monte de blá blá blá e transferências de culpas que não dão em nada mas enchem o post de likes que, como diria o Silvio Santos, “valem mais do que dinheiro!”.

Entendo o discurso apaixonado de algumas pessoas, acreditem, eu também já fiz muito isso. Mas nos últimos anos tenho aprendido a analisar questões como esta por uma ótica mais MACRO. Eis alguns exemplos:

  • Os rios que cortam o bairro do Ipiranga e divisa de São Caetano/São Paulo, antes faziam várias curvas. Essas curvas não eram um mero acidente. A natureza ensinou que isso ajuda no escoamento e controle do fluxo da água. Daí tiveram a brilhante ideia de não somente afinar os rios mas tornar o percurso mais “reto”, o que obviamente é uma ideia “muito inteligente” já que isso potencializa o fluxo e facilita o transbordo. Para compensar a evidente burrada, criaram piscinões em áreas de risco pois obviamente a engenharia do projeto deixou a desejar;

  • A parte do Ipiranga mais próxima da estação tamanduateí era anteriormente bem mais povoada. Por ser um bairro industrial, lá moravam apenas as pessoas que trabalhavam nas metalúrgicas e transportadoras. Muitos se aposentaram nessas firmas e pretendiam viver no bairro até deixarem este mundo. No entanto, foram obrigados a venderem suas casas e “serem indenizadas” pois forçadamente o estado demoliu metade das casas ali perto para construção da estação Tamanduateí do metrô. O túnel dizimou uma área de aproximadamente 10 quarteirões que eram como disse, residências antigas.

MAS O METRÔ NÃO É UMA COISA LEGAL?!

Cara, eu uso! Não acho maravilhoso mas é o meu principal meio de transporte.

A questão aqui é a irresponsabilidade no projeto que minou grande parte da evasão de águas do bairro. Convido o leitor a:

  1. Andar na praça do metrô Tamanduateí e ver que quase não há bueiros;
  2. Passar pelo começo da Av Presidente Wilson e ver que somente a fachada do metrô está “linda” e o restante jogado às traças;
  3. Ver que os poucos bueiros existentes deságuam no rio Tamanduateí e Pinheiros e que, obviamente um transbordo criará uma pressão inversa que não permitirá o escoamento da água.


Aí vão aparecer “intelectuais orgânicos” falando o óbvio: “o povo é culpado também porque joga lixo na rua, a água vem, leva o lixo e entope o bueiro”.

Esta é a parte central deste texto pois esse tipo de declaração constata outra obviedade: ADORAMOS TRANSFERIR RESPONSABILIDADES E DETESTAMOS ASSUMIR NOSSO PAPEL DE TROUXA.

Muito mais do que lixo na rua, lá estão sofás, geladeiras, peças de carros, entulhos e por aí vai. A lista não pára e é proporcional ao tamanho da irresponsabilidade do cidadão que sabe, repito, sabe muito bem quais os efeitos de atos como esses e mesmo assim continua a fazer e a fazer. Se o que deixam em bloquinhos pode causar o entupimento de um bueiro, o que acha que uma geladeira inteira pode causar?

LEI DOS 5 PORQUÊS (aplicadas à Vila Carioca pois é a realidade que eu enfrento)

1. Por que aconteceram as enchentes?

R:Porque o rio transbordou

2. Por que o rio transbordou?

R: Porque algum gênio modificou o curso do rio tornando-o mais forte e mais fino


3. Por que esse gênio fez isso?

R: Porque o estado é muito eficiente e faz com que o dinheiro dos impostos seja muito bem aplicado em obras superfaturadas que dentre suas grandes proezas constrói um túnel de metrô eliminando bueiros e prejudicando a evasão das águas


4. Mas por que?

R: Por que “benefícios” como metrô, praças e desvio do curso de rios são bons para a população, ainda que a custo de obras irresponsáveis, superfaturadas e mal planejadas. Isso não é a população quem diz mas o próprio vendedor, o estado.

5. Então por que a população não enxerga isso?

R: Por que é mais fácil culpar quem joga lixo na rua, ou fazer militância para político de estimação do que abrir os olhos e enxergar que o estado é imoral, ineficiente e mais prejudica do que atrapalha.

*A isso soma-se a irresponsabilidade do cidadão

Quer mais uma evidência dessa ineficiência?

A própria população em pouquíssimas horas mobilizou-se para auxiliar famílias que sofreram grandes perdas com a enchente. Comunidades inteiras mostraram que não precisam do auxílio do governo para serem HUMANOS e ajudarem o próximo.

O grupo de jovens a quem pertenço (em uma igreja chamada ADAI) iniciou uma campanha para arrecadação de cestas básicas, eletrodomésticos, produtos de higiene pessoal. E não fomos só nós! Na mesma velocidade em que comentários infames bombaram nas redes sociais, vários movimentos pela cidade toda se formaram para cumprir o papel que jogamos nas mãos do estado.

Encerro esse texto ou melhor, esta confissão com duas das frases mais importantes da minha vida:

All rational action is in the first place individual action. Only the individual thinks. Only the individual reasons. Only the individual acts.
Ludwig Von Mises

O maior castigo para aqueles que não se interessam por política é que serão governados pelos que se interessam.

Arnold Toynbee

*Como última declaração quero dizer que duvido muito que a população mudaria de comportamento se o governo simplesmente mudasse de postura e entregasse obras de qualidade. No entanto, esta é a minha visão do bairro que eu moro. Certamente outras pessoas terão informações diferentes e igualmente úteis sobre seus respectivos bairros*

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