O economista Fernando Ulrich, atual conselheiro da Casa da Moeda, explicou em seu vídeo mais recente as principais diferenças entre criptomoedas como o Bitcoin e as moedas digitais de bancos centrais.
Um tópico que ganha cada vez mais espaço na grande mídia, quase tanto quanto o próprio Bitcoin, é o de moedas digitais de bancos centrais ou Central Bank Digital Currencies (CBDCs). Uma das narrativas que buscam criar é a de que elas substituirão as criptomoedas.
O próprio presidente do Banco Central do Brasil, Roberto Campos, disse que se tivéssemos um meio de pagamento barato, rápido, seguro, transparente e aberto, provavelmente nem existiria a demanda por criptomoedas. Além disso, ele admitiu que o Pix significava o início do real digital, e o ministro da economia Paulo Guedes confirmou que estamos nesse caminho.
Afinal, o que é uma CBDC?
As CBDCs nada mais serão do que a moeda estatal de forma completamente digital. “Em vez de utilizarmos o papel moeda, teríamos uma carteira digital do banco central”, disse Fernando Ulrich.
Mas para além de simplesmente seguir uma tendência de digitalização, que se intensificou durante a pandemia de Covid-19, as CBDCs tem outros motivos para serem criadas.
A digitalização das moedas fiduciárias representam também uma resposta para o Bitcoin e outras criptos, que passaram a ameaçar a soberania das moedas de curso forçado. Principalmente após o lançamento da Libra, os bancos centrais perceberam que ficariam para trás se não agissem rápido.
“Eles se deram conta que agora a coisa ficou séria. Uma moeda digital emitida por uma empresa como o Facebook, que é uma rede que tem 2,5 bilhões de pessoas, essa moeda pode ter curso quase que da noite para o dia”, disse Ulrich. “Então especialmente aqueles bancos centrais que têm moedas emergentes, como é o nosso caso do real brasileiro, a demanda pela suas moedas poderia ser impactada.”
Outra justificativa para esse fenômeno, de acordo com o economista e ex-XDEX, é a ideia da abolição completa do dinheiro em espécie. “Economistas como Kenneth Rogoff tem essa ideia, ele até escreveu um livro chamado “A maldição do dinheiro em espécie”. O racional por trás disso é, primeiro, evitar a lavagem de dinheiro, financiamento ao terrorismo e atividades ilícitas. Ok, todas legítimas, mas também para possibilitar aos bancos centrais que estes consigam impor taxas de juros negativas.”
“É permitir ao banco central um controle absoluto da oferta monetária e impor políticas que não seriam aceitas pela população de forma voluntária, e que com a existência do papel-moeda não é possível.”, continuou ele.
Em um artigo recente, Rogoff afirmou que se não fosse o dinheiro em espécie as taxas de juros já poderiam estar em -5% ao ano. Mas, obviamente, não é possível impor taxas negativas no dinheiro físico.
“Criptomoeda estatal é um oximoro”
Fernando foi além nas suas críticas, respondendo também às pessoas que dizem que essa tendência representam “as criptomoedas dos bancos centrais” ou “criptomoedas estatais”. Alguns podem até ir além e chamar de o avanço das criptos.
Segundo Ulrich, o conceito de “criptomoeda estatal é um oximoro”, que seguiu explicando:
“Na minha concepção, criptomoeda por definição é algo aberto, transparente para o usuário, que qualquer um pode utilizar, não é necessário pedir licença ou autorização para nenhuma autoridade ou entidade centralizada. [Além disso,] todo código fonte é inspecionado, pode ser auditado por qualquer pessoa, há essa transparência no sistema e o livre uso por quem quer que seja.
No caso do Bitcoin, por exemplo, basta baixar uma carteira ou o sistema e você está apto a transacionar com qualquer pessoa. Mas quando a gente fala de criptomoeda de banco central, não há essa transparência, não há essa abertura, não há possibilidade de auditar. Vocês acham que vai ser possível auditar o código fonte do real digital ou dólar digital? Impossível.”
Sem transparência para o cidadão, as CBDCs pode ser considerada a antítese das demais criptomoedas, finalizou Ulrich. No caso das moedas estatais digitalizadas, existirá exatamente o contrário, a transparência completa por parte da autoridade do banco central.
“A autoridade central teria controle de tudo que está acontecendo: todas as transações que ocorrem, quem está transacionando, quanto o sujeito ou a empresa tem na carteira, quais as compras que ele fez, quando, em que horário, qual era a empresa receptora, qual foi a quantidade. Seria um controle e uma transparência realmente Orwelliana.“, disse Ulrich.
O imposto inflacionário e o controle social
Além disso, as moedas digitais de bancos centrais facilitariam o financiamento da máquina pública através da emissão de moeda, que seria mais fácil, rápida e barata.
“Essa moeda faz com que o governo consiga se financiar, consiga expropriar riqueza da população, pelo chamado imposto inflacionário, emitindo moeda e diluindo o poder de compra do dinheiro sem precisar tributar diretamente ou explicitamente.”
Segundo Ulrich, o cenário é assustador, pois o dinheiro passará a ser uma ferramenta de controle, com total transparência apenas para a entidade central, que é o governo.
Bitcoin é a antítese de uma CBDC
A transparência do Bitcoin, por outro lado, parte do usuário e garante que o sistema seja seguro e idôneo. “Não importa [quem seja] as pessoas que estão gerindo os full nodes ou os mineradores, as regras do protocolo incentivam o comportamento honesto”, diz Ulrich.
Por conta do sistema de consenso distribuído, é simplesmente mais rentável continuar seguindo um comportamento honesto para continuar ganhando as recompensas de trabalhar para a rede do Bitcoin. É por isso que as atualizações de código aguardam por um consenso geral na comunidade antes de serem implantadas pelos mineradores.
“No sistema de CBDC, sim importa quem está por trás operando. Qual é o grupo de pessoas, qual é o partido, porque se cair em mãos erradas muita coisa perversa pode ser realizada por meio de um sistema de dinheiro estatal completamente digital, onde uma autoridade tem esse nível de visão e transparência dos cidadãos. Realmente é um cenário distópico.”
Privacidade financeira importa
Hoje em dia, a perda de privacidade é vista como algo inevitável pela maioria das pessoas, enquanto algumas dizem até mesmo que isso é necessário “em nome do bem comum”. Mas, para Ulrich, esse ainda é um ponto que vale a pena defender.
“Se imaginarmos a privacidade nas nossas vidas, no nosso WhatsApp, nos nossos emails, ninguém gostaria de que governo nenhum ou qualquer agência governamental tivesse acesso a todas as nossas conversas pessoais”, afirmou ele.
Afinal, a privacidade não é algo relacionado diretamente com a criminalidade, é apenas o estado natural das coisas. Quem comentou esse assunto também foi Riccardo Spagni, desenvolvedor do Monero, cripto focada em privacidade.
“Por exemplo, quando você vai ao banheiro, você geralmente fecha a porta. E você não faz isso porque planeja derrubar o governo enquanto está no banheiro. Alguns até podem fazer isso, mas você provavelmente não. Você só quer usar o banheiro”.
Até mesmo com o uso de cartões de crédito em vez do bom e velho dinheiro físico estamos perdendo privacidade financeira. As compras que você faz na farmácia, por exemplo, muitas vezes atreladas ao seu CPF em troca de algum desconto, servem para empresas de seguro de saúde calcularem o quanto podem lhe cobrar a mais.
Edward Snowden, analista de sistemas ex-NSA, conhecido por ter vazado sistemas de vigilância global do governo americano e perseguido por isso, também já comentou o assunto:
“Dizer que você não se importa com direito à privacidade, pois não tem nada a esconder, é a mesma coisa que dizer que não se importa com a liberdade de expressão, pois não tem nada a dizer.”